terça-feira, 27 de julho de 2010

Sobre Felicidade, morangos & histórias de ônibus

"Bem vinda ao mundo dos adultos." -- eis a sentença que meu irmão insistia em repetir quando eu relatava minhas desilusões com o trabalho, as contas, o companheiro ou o que fosse...
... lá estava eu, jovem e incerta dos passos já caminhados e daqueles que o seguiriam...
...naquela época eu ia ao trabalho de ônibus. Por vezes, conseguia pegar um único ônibus para ir se saísse com bastante antecedência, se não, fazia conexões... ficava contente quando conseguia me sentar, tão contente ficava em não chegar já cansada ao trabalho que me instalava num canto da escada... lembro-me de uma ida em que quis aproveitar o tempo corrigindo provas:

meu canetão verde -- dei folga pro vermelho por causa de um papo que a cor se tornara traumatizante em correções -- bailava em frente a meu assento, sobre minha bolsa, meus livros e avaliações e eis que "RRRrrr" o ônibus freia e com ele fica meu braço esticado, segurando o canetão, aquele danado canetão com sua infalível tinta. A tinta era tão boa que risquei o relógio do camarada -- ele era realmente camarada, do tipo gente boa -- em pé ao meu lado. Passei a mão no visor do relógio para desfazer meu lapso e... é lógico que todos já entenderam que o risco não saiu! Me desculpei inúmeras vezes -- tendo o rubor de minhas bochechas salientes como aliado a comprovar minha sinceridade --, passei meu número pro cara me passar o orçamento da limpeza (e não era paquera, porque é comum a gente pensar isso quando alguém dá seu número no meio de uma história) e desde então não mais corrigi provas no ônibus... passei a ouvir histórias...

Acho que esses grandes escritores do cotidiano devem se inspirar em histórias de ônibus. Por vezes o conforto em ouvir aquelas histórias alheias ultrapassa o conforto do carro próprio, por mais que este seja com ar (condicionado) e direção (hidráulica). Se um dia eu decidir largar mão da teoria e ir à prática de meu estudo de Letras, resolver escrever um livro de contos ou crônicas, terei que voltar a pegar ônibus. Ouvidos atentos, não se trata de nenhum tipo de invasão, a pessoa está sentada a sua frente espalhando pelo ar aquelas palavrinhas encantadoras...
Adoro ouvir conversas de ônibus! Tem até comunidade no Orkut!!

Eram duas senhoras, empregadas domésticas ou secretárias do lar -- como queiram ou considerem mais politicamente correto, que agora até a função das pessoas pode ofender, já perceberam?! Elas se encontraram ao acaso naquele mesmo ônibus e sentaram-se em frente a mim: "E como que tá a vida?" "Ah, tá tudo muito bem! Minha menina já tá com a casinha dela construída pertinho da minha, ela e o marido já acabaram. Saíram de lá de casa mas veem a gente todo dia, que é ali junto. E o meu menino mais novo tá fazendo curso, já tá começando a trabalhar." "Ai, dá vazio, mas é bom vê os filho tomando rumo, né?!" "É, mas eu tô feliz mesmo não tendo eles o tempo todo. Agora eu e meu marido temo mais tempo, não tamo trabalhando tanto, aí tamo cuidando das nossas coisa. Sabe que agora a gente fez duma vez nosso jardim, tá com grama e tem um caminho de pedra. Ele foi colocando as pedra pra dá cada passo até em casa, do jeito que eu tinha na cabeça." "Ai, que maravilha! Deve tá muito bonito! Já tô imaginando." ... eu também já estava imaginando... "Esses dias a gente tá chegando do trabalho e tamo plantando uns moranguinho antes da janta. Coisa mais linda!" ... me peguei pensando que não deve haver coisa melhor que chegar em casa com disposição para plantar morangos ao lado de quem se ama. Naquele momento senti aquela brisinha no rosto que puxa os lábios em sorriso, aquela tal invejinha boa... queria eu também ter meu mesmo emprego de décadas, juntar meu salário mínimo ao de meu companheiro, ver meus filhos crescendo e prosperando, e plantar morangos em meu singelo jardim ao lado de meu companheiro de toda uma vida, o homem que fez o jardim que eu idealizara para enfeitar nosso lar... às vezes me recordo dessa história e toda a vida daquela mulher volta a ser a minha também em uma pequena fração de segundos... nesses momentos somos felizes, nós três: a mulher que planta morangos, a amiga de longa data que a ouve com gosto e eu -- a desconhecida que desembarcou do ônibus levando aquela história como lembrança de Felicidade.

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